5 de abril de 2013

Servidão Humana


 
Como sempre, ou quase sempre, acontece, leio primeiro um livro sem saber nada sobre ele e só depois vou ver o que as críticas, os amigos, a wikipédia ou o que seja, dizem dele. Normalmente, fico desiludida e esqueço depressa a crítica, mas no caso da Servidão Humana esta crítica deixou-me a gostar ainda mais dele, porque permitiu-me a comparação directa do que corresponde à realidade (ou seja, à vida do Maugham) e do que corresponde à ficção (ou seja à vida do Philip).
Adoro o Maugham, quase de paixão, apesar de, com este, ter lido apenas 3 livros. Adorava tê-lo conhecido e acho uma injustiça verdadeira ele ter morrido ainda antes da minha mãe nascer. Não seria bom chegar-me ao pé dele, estender-lhe a mão e "Olá Sr. Maugham [lê-se algo como Môme] como tem passado, agora sente-se aqui, beba um chá [o homem era inglês e todo o bom inglês gosta de chá] e fale."? 

Enquanto li os únicos três livros dele que li (entre os quais o meu livro favorito de sempre, o Fio da Navalha, que já comentei aqui) dava-me muitas vezes vontade de lhe ligar lá para o outro mundo para comentar coisas. Felizmente para o Maugham e infelizmente para mim, isso não é possível.
 
Esta seria a cara que provavelmente ele faria ao ouvir um comentário meu sobre uma passagem qualquer do livro.
Pensando bem, talvez não seja assim tão mau ele ter morrido em 1965...
 
O que gostei mais (aconteceu o mesmo no livro O Véu Pintado) foi o prefácio (como a edição que eu tenho da Servidão Humana já é antiga, tive de o retirar da net), em que ele fala da história que está por trás do livro. Fui ler, pela primeira vez, a biografia dele que está na wikipédia e parece que é recorrente nas obras de Maugham misturar o real com a ficção, ao ponto de ter afirmado que muitas vezes, já não conseguia dissociar num livro uma coisa da outra.
 
Acho que podia estar aqui a escrever um post de meio metro sobre o que gosto, no geral, dos livros dele, da maneira de falar (escrever...) dele, mas se calhar deixo isso para um post dedicado ao homem e passo a falar da Servidão Humana:
 
O livro não é, como o Maugham diz no prefácio, uma autobiografia, mas sim um romance autobiográfico. Diz para quem quiser ler que foi escrito não para vender, mas para se libertar de todo um passado que o incomodava recorrentemente. 
 
Philip tem muitas parecenças com o Maugham: à semelhança deste, é órfão entregue aos cuidados de um tio vigário (em Blackstable, sendo que Maugham viveu em Whitestable) e frequentou a escola em Tercanbury (e Maugham frequentou a King's School em Canterbury). O Philip tem um problema de pé torto (Talipes equinus), e Maugham sofria de gaguez. Por isso, como a sua personagem, era intensamente gozado na escola. As parecenças não acabam por aqui, mas dá para terem uma ideia.
Isto agradou-me particularmente porque começo a perceber-me que, para além dos livros que ele escreve, do que eu gosto de verdade é dele, por isso foi bom ir tentando adivinhar o que era o Maugham e o que era o Philip (depois foi só ir a este site e confirmar ou refutar suspeitas).
 
O livro à primeira vista, é uma sequencia narrativa das paixões de Philip, das suas angústias e dúvidas enquanto ser humano perfeitamente normal - vai para a Alemanha, vai para Paris, depois segue para Londres, onde estuda principalmente medicina mas tem muitas outras ocupações. Pelo meio, vamos conhecendo os seus diferentes amigos, que vão ter influência na formação da sua identidade e na forma como encara a vida.
 
Volto mais uma vez a referir a atualidade surpreendente das personagens. O livro foi editado em 1915 e começado a escrever quando o Maugham tinha 37 anos, portanto a sua juventude foi ainda no séc. XIX, e, não sei quanto a vocês, mas eu mal vejo as pessoas do séc. XIX  como pessoas, imagino sempre que eram, em quase tudo, muito diferentes do protótipo do que somos agora - e é ao mesmo tempo reconfortante e deprimente verificar o quanto somos iguais ao que éramos há mais de 100 anos atrás. Ele pega nas pessoas, no que somos mesmo lá no fundo, e despeja-as no papel com uma clareza, pertinência e objetividade que nunca vi em nenhum outro autor, nem da atualidade e muito menos em autores clássicos. O que juntando a um humor negro e sarcástico (como eu gosto - uma amiga chegou-me a pôr a alcunha de "humor sarcástico"...) é a chave para que fique irremediavelmente rendida.
 
Não me parecem pessoas como nós. E o pior é que eu sei que eram.
Desculpem, mas não é por mal!
 
Philip passa o livro permanentemente insatisfeito, em busca de algo mais - como quase toda a gente, certo? Passa momentos bons, outros muito maus, tem diversas paixões (algumas subtis que podem escapar ao leitor desatento, porque na altura algumas coisas não podiam ser muito explícitas - não se podia escrever de uma maneira qualquer que Philip se apaixonou pelo colega de Tercanbury, por ex., ou que determinada personagem tinha sífilis), mas a que dura mais tempo é com Mildred, uma empregada de mesa. À conta da Mildred, experimentei com Philip os maiores sentimentos contraditórios que se podem sentir por uma personagem de ficção: ora me apetecia mergulhar no livro para lhe pespegar duas valentes chapadas na cara, ora me apetecia convidá-lo para jantar, ora apetecia-me fazer-lhe um cafuné. 
 
Mas mais que um livro sobre paixões, é um livro sobre o sentido ou a futilidade da vida (apesar de menos evidente do que no Fio da Navalha), sobre as amarras que constantemente cercam a existência do ser humano. Sobre o que é, afinal, ser feliz e de como, ao contrário do que pensamos muitas vezes, a paixão e a nossa busca por uma existência repleta de valores elevados e experiências incomuns  nos pode muitas vezes conduzir ao sofrimento.
 
Como conclusão, digo-vos que adorei o fim. Que pena não haver um 2º volume, com a continuação.
Obrigada Maugham, por não me teres desiludido. Venha o próximo ;)
É preciso ser-se verdadeiramente especial para se escrever sobre coisas que toda a gente conhece e ainda assim cativar-nos pela originalidade.  

4 comentários:

  1. WSM foi o maior contador de histórias que eu li. Os seus romances e contos são quadros comoventes sobre a condição humana, ao mesmo tempo tão simples e tão complexa. E escreve maravilhosamente. Parabéns pelo texto.

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    1. É mesmo isso que me agrada nos livros dele (pelo menos nos livros que já li), é a capacidade de pôr no papel essa complexidade e simplicidade do ser humano. Estou completamente rendida à sua maneira de escrever :)
      Obrigada pela visita!

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  2. Eu não sei você, autora desta ótima crítica, no entanto eu terminei o livro com uma raiva muito grande do Philip. Claramente ele tinha um problema interno (o 'caso de servidão humana') e jamais conseguiria ser feliz. Por exemplo, ele gostava de Mildred pois ela a desprezava. Quando ela a valoriza em palavras, apesar de isso ser o que ele mais quer, quando ela faz isso, ele sente vontade de se afastar dela (uma passagem deixa isso bem claro). É alguém que 'é escravo de suas paixões' e 'escravo de servir' (talvez por sua história) e não conseguiu melhorar isso. O que eu mais queria era que, quando Mildred fosse até ele porque não tinha mais ninguém a que recorrer, ele desse um bom fora nela e ficasse com quem realmente merecia sua atenção, Noah!

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    1. É mesmo, o Philip só me dava vontade de lhe bater, ao mesmo tempo que sentia uma verdadeira pena dele :)

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